domingo, 27 de fevereiro de 2011

O cisne negro e o instinto de perfeição.


Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga,
tem ameba
Só a bailarina que não tem

E não tem coceira
Verruga nem frieira
Nem falta de maneira ela não tem




Será, bailarina, que és tão perfeita assim?
Será, bailarina, seu mundo de marfim?


Lêdo engando nosso...
Lêdo engano seu...
Pois no final somos todos humanos...
nenhum é Deus.



Era uma vez uma menina...ou era uma bailarina? Almejava a perfeição técnica e corporal como vemos tantas e tantas meninas almejarem a beleza mentirosa e inatingível das revistas e photoshops. Repentinamente acordou suada, no meio da noite, se olhando em volta de pureza, castidade, doces gestos, doces palavras... mas estava longe de comer doces alimentos.
Frieza? Maldade? De quem?! Da pressão de ser um melhor alguém?
Ih... melhor esquecer! Mas menina-bailarina ou bailarina-menina não queria esquecer...
nem esconder sua terrível obsessão pelo "ser". O "ser" supremo. O "ser" único e lógico.
O "ser" que lhe traria reconhecimento de todos! O "ser" cercado de glóriaaa ha ha haaaa!!!
Não haveria nada melhor, sim?
Do que cercar toda a sua vida em torno de um único objetivo, mesmo que para isso tivesse de destruir tanto seu corpo-santuário como sua mente, já um bocado mudada por sombrios pensamentos...


Mas enfim, era uma vez uma menina... bailarina. Ela acordou. Olhou para os lados, vestidos de verde-musgo, sentiu o frio que vinha envolto em inferno psicológico. Uma voz lhe sussurou ao ouvido: "Procure a árvore... busque a árvore... Vamos, menina, não perca tempo! "
Como que guiada por frio vento, menina caminhou, sentindo pedras queimarem em seus pés, sentindo dores terríveis em suas articulações, sentindo espinhos crescerem em suas costas... mas ela tinha que continuar, não tinha? Seu enorme mas frágil ego não se renderia assim tão fácil!
Ao que parecia ser uma eternidade, ali avistou...
O quê?
Uma árvore.
Árvore?!
Sim, árvore! Mas não qualquer árvore!
Por quê?
Feita de um outro tipo de folhas...
Que outro tipo?
Folhas de penas de cisne...
Que cisne?
O cisne negro...


Redemoinho passa. Menina não pode tocar na árvore! Não pode e não tocará!
Não pode e não tocará!
Mil Ninas sorridentes se voltam, rindo
e gritando , zombando do sofrimento e das dores da menina...
que vai deixando de se tornar menina, logo que, sofregamente,
consegue tocar nas folhas de penas da árvore...

Rasga uma!
Ah, dor!
Mas é uma dor boa , não é?
Carnal, única, independente?
Menina começando a ser mulher quer mais!
Rasga outra!
Ahh!
Seus pés doem como nunca!
Mas ela brilha, em um brilho negro e intenso!
E quer mais, sempre mais!
Rasga a terceira, arranhões em costas, braços, beleza delicada
rasgada como papel ofício.
Rasga a quarta, se vendo cruel, se vendo em sua oponente,
se vendo como ela, e assim sair rasgando todas as penas-folhas da árvore negra...
até sobrar uma...
mas aí ela já é rainha, não é?

Tudo que ela queria!

Mas a última representa a glória: a glória das palmas,
do beijo, do homem seu, da inveja alheia... da mãe distante e não mais atrapalhando-a...
dos olhos amarelos e agressivamente assustadores que fitam a platéia...
Rasg!


Sente uma dor no peito, muito forte, não podendo ser ignorada....
sangue se esvai...
células do corpo pedindo mais, mais...
mas não é mais possível...
Menina tem que dormir... dormir...
dormir...
em meio a tumulto e glória, a redenção e a extrema intensidade do viver...
olhos se fecham...
e a realidade de ter se deixado matar bate nua e crua à sua porta...



Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem

Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina
ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem


... mas, ao final de tudo, o importante é mesmo sentir?


Até que ponto podemos deixar nos tomar pelo instinto de busca pela perfeição?




























Música: "Ciranda da Bailarina" de Adriana Calcanhoto.
Filme: O Cisne Negro.

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